terça-feira, 27 de agosto de 2019

Justificado para Ser Justo


“7 O Senhor perguntou a Satanás: Donde vens? E Satanás respondeu ao Senhor, dizendo: De rodear a terra, e de passear por ela.
8 Disse o Senhor a Satanás: Notaste porventura o meu servo Jó, que ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, que teme a Deus e se desvia do mal?
9 Então respondeu Satanás ao Senhor, e disse: Porventura Jó teme a Deus debalde?
10 Não o tens protegido de todo lado a ele, a sua casa e a tudo quanto tem? Tens abençoado a obra de suas mãos, e os seus bens se multiplicam na terra.
11 Mas estende agora a tua mão, e toca-lhe em tudo quanto tem, e ele blasfemará de ti na tua face!
12 Ao que disse o Senhor a Satanás: Eis que tudo o que ele tem está no teu poder; somente contra ele não estendas a tua mão. E Satanás saiu da presença do Senhor.” (Jó 1.7-12)
O testemunho que o próprio Deus deu de Jó, mesmo antes da grande provação a que ele foi submetido, foi o de que “ninguém há na terra semelhante a ele, homem íntegro e reto, que teme a Deus e se desvia do mal”.
Evidentemente, Jó havia sido justificado pela fé, tal como havia sido Abraão, para que pudesse sustentar tal testemunho de um procedimento grandemente justo.
Pela fé, ele havia recebido graça da parte de Deus, e um coração terno e sensível para temer a Deus, se desviar do mal,, e caminhar em justiça perante Ele.
O quanto Jó estava consciente de que a fé que ele tinha no Senhor fora recebida como um dom do próprio Deus, e que era movido pelo Espírito Santo para fazer somente aquilo que era aprovado diante dEle, é bem possível que não fosse algo que estivesse plenamente confirmado inicialmente nele, pois é o que se depreende de todo o desenrolar dos discursos que encontramos em seu livro, e especialmente pela confissão que ele próprio veio a fazer no fim, dizendo que antes conhecia o Senhor somente de ouvir, mas que a partir de então ele o via com os seus olhos, ou seja, ele havia avançado no conhecimento da graça divina, e da pessoa do próprio Deus, que é afinal, Ele mesmo, na pessoa de Jesus Cristo, a justiça e a vida do pecador.
As grandes tribulações que Jó experimentou contribuíram para que ele não somente entendesse que todo o seu procedimento justo não vinha de si mesmo, mas da graça de Deus, como também que todo o nosso viver se encontra plenamente nas mãos do Senhor, cujos planos jamais podem ser frustrados.
É Deus, quem por seu poder, misericórdia e graça, nos livra de nossas aflições e de nossos pecados. Não podemos fazer isto, nem mesmo pela prática de um procedimento inteiramente justo. Jó aprendeu esta lição quando Deus virou o seu cativeiro,
Quando o alvo em vista é o de alcançar a vida eterna e a reconciliação com Deus, as boas obras dos homens são boas para nada. Jó havia alcançado a vida eterna e reconciliação com Deus por meio da sua fé no Senhor, e pela exclusiva graça e misericórdia de Deus, e a forma justa como ele viveu foi uma mera consequência disto.
Noé, Abraão e Jó alcançaram o céu por meio da fé, e não por causa das obras que eles praticaram.
Todavia, suas vidas se tornaram exemplos para nós, quanto ao modo como devem viver aqueles que foram justificados por meio da fé em Jesus.
Disto temos o testemunho dos apóstolos:
1 Que diremos, pois? Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante?
2 De modo nenhum! Como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?
3 Ou, porventura, ignorais que todos nós que fomos batizados em Cristo Jesus fomos batizados na sua morte?
4 Fomos, pois, sepultados com ele na morte pelo batismo; para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também andemos nós em novidade de vida.
5 Porque, se fomos unidos com ele na semelhança da sua morte, certamente, o seremos também na semelhança da sua ressurreição,
6 sabendo isto: que foi crucificado com ele o nosso velho homem, para que o corpo do pecado seja destruído, e não sirvamos o pecado como escravos;
7 porquanto quem morreu está justificado do pecado.
8 Ora, se já morremos com Cristo, cremos que também com ele viveremos,
9 sabedores de que, havendo Cristo ressuscitado dentre os mortos, já não morre; a morte já não tem domínio sobre ele.
10 Pois, quanto a ter morrido, de uma vez para sempre morreu para o pecado; mas, quanto a viver, vive para Deus.
11 Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus.
12 Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, de maneira que obedeçais às suas paixões;
13 nem ofereçais cada um os membros do seu corpo ao pecado, como instrumentos de iniquidade; mas oferecei-vos a Deus, como ressurretos dentre os mortos, e os vossos membros, a Deus, como instrumentos de justiça.
14 Porque o pecado não terá domínio sobre vós; pois não estais debaixo da lei, e sim da graça.
15 E daí? Havemos de pecar porque não estamos debaixo da lei, e sim da graça? De modo nenhum!
16 Não sabeis que daquele a quem vos ofereceis como servos para obediência, desse mesmo a quem obedeceis sois servos, seja do pecado para a morte ou da obediência para a justiça?
17 Mas graças a Deus porque, outrora, escravos do pecado, contudo, viestes a obedecer de coração à forma de doutrina a que fostes entregues;
18 e, uma vez libertados do pecado, fostes feitos servos da justiça.
19 Falo como homem, por causa da fraqueza da vossa carne. Assim como oferecestes os vossos membros para a escravidão da impureza e da maldade para a maldade, assim oferecei, agora, os vossos membros para servirem à justiça para a santificação.
20 Porque, quando éreis escravos do pecado, estáveis isentos em relação à justiça.
21 Naquele tempo, que resultados colhestes? Somente as coisas de que, agora, vos envergonhais; porque o fim delas é morte.
22 Agora, porém, libertados do pecado, transformados em servos de Deus, tendes o vosso fruto para a santificação e, por fim, a vida eterna;
23 porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor.” (Romanos 6.1-23)
Veja que o apóstolo revela qual é a chave para entendermos a exigência de um viver segundo a justiça. Ele diz que é para a santificação, ou seja, isto faz parte da santificação sem a qual ninguém verá o Senhor. E sabemos que a santificação é mais do que simplesmente um viver justo, pois também demanda amor, misericórdia, longanimidade, e muitas outras virtudes que procedem do próprio Cristo para nós.
“Assim como oferecestes os vossos membros para a escravidão da impureza e da maldade para a maldade, assim oferecei, agora, os vossos membros para servirem à justiça para a santificação.”
E a esta santificação referida, segue-se o seu efeito, que é a vida eterna. A vida de coparticipação da natureza divina. A vida de comunhão amorosa com Ele para todo o sempre.
“Agora, porém, libertados do pecado, transformados em servos de Deus, tendes o vosso fruto para a santificação e, por fim, a vida eterna; porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor.”
9 Não retarda o Senhor a sua promessa, como alguns a julgam demorada; pelo contrário, ele é longânimo para convosco, não querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento.
10 Virá, entretanto, como ladrão, o Dia do Senhor, no qual os céus passarão com estrepitoso estrondo, e os elementos se desfarão abrasados; também a terra e as obras que nela existem serão atingidas.
11 Visto que todas essas coisas hão de ser assim desfeitas, deveis ser tais como os que vivem em santo procedimento e piedade,
12 esperando e apressando a vinda do Dia de Deus, por causa do qual os céus, incendiados, serão desfeitos, e os elementos abrasados se derreterão.
13 Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça.
14 Por essa razão, pois, amados, esperando estas coisas, empenhai-vos por serdes achados por ele em paz, sem mácula e irrepreensíveis,” (II Pedro 3.9-14)
Um viver na prática da justiça neste mundo é o início daquela vida que será perfeitamente justa quando Jesus se manifestar em Sua segunda vinda, pois fomos criados para sermos à imagem e semelhança de Deus, não quanto à Sua onipotência, onisciência e onipresença, mas quanto à Sua santidade e caráter.
É por conta desta perfeição absoluta que teremos na vida do porvir, que alcançamos pela fé, segundo a esperança que nos é proposta e oferecida pelo evangelho, que muitas falhas e imperfeições que nos acompanhem em nossa jornada terrena, enquanto buscamos viver de maneira piedosa e santa, em obediência à vontade de Deus, são suportadas por Ele, em razão da misericórdia e longanimidade que temos na Nova Aliança, pelos méritos de Jesus, e da promessa que Deus nos fez de perdoar todos os nossos pecados, uma vez que Jesus pagou inteiramente o preço exigido por Sua justiça para que fôssemos redimidos.
Deus é espírito e importa ser adorado e servido em espírito e em verdade.
Depois da entrada do pecado no mundo, todos se tornaram carnais, deixaram de ser espirituais, e somente por meio da fé em Jesus para o recebimento de uma nova natureza celestial e divina, que o homem pode voltar a ser vivificado em espírito, tornando-se espiritual, e assim habilitado à comunhão com Deus.
Não se pense portanto, em Enoque, Noé, Abraão, Jó, Moisés, Davi, Elias, Eliseu, e todos os grandes homens de Deus como justos diante de Deus, sem o concurso da fé, pois sem fé é impossível agradar a Deus, conforme podemos ver na galeria dos justos relacionados no 11º capítulo de Hebreus.
A justiça de Deus é muito mais do que simplesmente cumprimento de deveres morais, pois exige conformação absoluta à Sua santidade, aí incluídos os deveres de culto e adoração, pelo exercício de fé, louvor, oração, reverência, obediência, serviço etc.
A justiça divina demanda mortificação do pecado, por estarmos crucificados quanto ao ego e o mundo. Para isto, tentações devem ser vencidas e nos despojarmos da velha natureza, para que possamos ser revestidos pela nova, que é celestial, espiritual e divina. Tudo isto pode ser alcançado somente por meio da nossa união com Jesus Cristo e um andar diário no Espírito Santo. Vemos assim, que ser justo segundo Deus é muito mais do que ser meramente honesto no uso de coisas materiais.
Importa pois ser justificados pela fé, e pela mesma fé, sermos santificados e habilitados para um procedimento justo diante de Deus e dos homens.
Todos os que foram grandes pela fé que tiveram, também foram grandes em sua santificação.
Estamos destacando o exemplo de Jó, notadamente pelo testemunho dado pelo próprio no 31º capítulo do seu livro.
“1 Fiz pacto com os meus olhos; como, pois, os fixaria numa virgem?
2 Pois que porção teria eu de Deus lá de cima, e que herança do Todo-Poderoso lá do alto?
3 Não é a destruição para o perverso, e o desastre para os obradores da iniquidade?
4 Não vê ele os meus caminhos, e não conta todos os meus passos?
5 Se eu tenho andado com falsidade, e se o meu pé se tem apressado após o engano
6 (pese-me Deus em balanças fiéis, e conheça a minha integridade);
7 se os meus passos se têm desviado do caminho, e se o meu coração tem seguido os meus olhos, e se qualquer mancha se tem pegado às minhas mãos;
8 então semeie eu e outro coma, e seja arrancado o produto do meu campo.
9 Se o meu coração se deixou seduzir por causa duma mulher, ou se eu tenho armado traição à porta do meu próximo,
10 então moa minha mulher para outro, e outros se encurvem sobre ela.
11 Pois isso seria um crime infame; sim, isso seria uma iniquidade para ser punida pelos juízes;
12 porque seria fogo que consome até o abismo, e desarraigaria toda a minha renda.
13 Se desprezei o direito do meu servo ou da minha serva, quando eles pleitearam comigo,
14 então que faria eu quando Deus se levantasse? E quando ele me viesse inquirir, que lhe responderia?
15 Aquele que me formou no ventre não o fez também a meu servo? E não foi um que nos plasmou na madre?
16 Se tenho negado aos pobres o que desejavam, ou feito desfalecer os olhos da viúva,
17 ou se tenho comido sozinho o meu bocado, e não tem comido dele o órfão também
18 (pois desde a minha mocidade o órfão cresceu comigo como com seu pai, e a viúva, tenho-a guiado desde o ventre de minha mãe);
19 se tenho visto alguém perecer por falta de roupa, ou o necessitado não ter com que se cobrir;
20 se os seus lombos não me abençoaram, se ele não se aquentava com os velos dos meus cordeiros;
21 se levantei a minha mão contra o órfão, porque na porta via a minha ajuda;
22 então caia do ombro a minha espádua, e separe-se o meu braço da sua juntura.
23 Pois a calamidade vinda de Deus seria para mim um horror, e eu não poderia suportar a sua majestade.
24 Se do ouro fiz a minha esperança, ou disse ao ouro fino: Tu és a minha confiança;
25 se me regozijei por ser grande a minha riqueza, e por ter a minha mão alcança o muito;
26 se olhei para o sol, quando resplandecia, ou para a lua, quando ela caminhava em esplendor,
27 e o meu coração se deixou enganar em oculto, e a minha boca beijou a minha mão;
28 isso também seria uma iniquidade para ser punida pelos juízes; pois assim teria negado a Deus que está lá em cima.
29 Se me regozijei com a ruína do que me tem ódio, e se exultei quando o mal lhe sobreveio
30 (mas eu não deixei pecar a minha boca, pedindo com imprecação a sua morte);
31 se as pessoas da minha tenda não disseram: Quem há que não se tenha saciado com carne provida por ele?
32 O estrangeiro não passava a noite na rua; mas eu abria as minhas portas ao viandante;
33 se, como Adão, encobri as minhas transgressões, ocultando a minha iniquidade no meu seio,
34 porque tinha medo da grande multidão, e o desprezo das famílias me aterrorizava, de modo que me calei, e não saí da porta...
35 Ah! quem me dera um que me ouvisse! Eis a minha defesa, que me responda o Todo-Poderoso! Quem dera tivesse eu a acusação escrita pelo meu adversário!
36 Por certo eu a levaria sobre o ombro, sobre mim a ataria como coroa.
37 Eu lhe daria conta dos meus passos; como príncipe me chegaria a ele
38 Se a minha terra clamar contra mim, e se os seus sulcos juntamente chorarem;
39 se comi os seus frutos sem dinheiro, ou se fiz que morressem os seus donos;
40 por trigo me produza cardos, e por cevada joio. Acabaram-se as palavras de Jó.” (Jó 31)
Que gigante espiritual era Jó!
E quão anões somos nós, na grande maioria, comparados com ele!
Sua justiça não era apenas de palavra.
Os cristãos dizem que são justos, mas em sua grande maioria aprenderam apenas a dizer isto, sem atinar com o verdadeiro significado de um viver justo.
Muitos falam com a boca e saem a praticar toda sorte de coisas abomináveis, e não procuram guardar seus corações em verdadeira pureza. Então que justiça está sendo implantada neles pelo Espírito Santo?
Quando lemos o testemunho que Jó nos dá neste capítulo 31º, pasmamos de quão longe estamos deste grau de santificação que ele havia alcançado.
Logo no primeiro versículo ele afirma que havia feito um pacto com os seus olhos para não fixá-los numa virgem.
E que o fizera pelo temor de Deus, para  que não perdesse qualquer galardão da parte dEle (v. 2).
Ele caminhava sabendo que Deus é onisciente e onipresente e que tudo sabe e vê, e que avalia todos os nossos atos (v. 4).
Jó ponderava portanto, todo o seu caminhar neste mundo, tudo passando sob o crivo dos olhos do Senhor, de modo que ao ser pesado por Deus em Sua balança, nunca fosse achado em falta.
Ele não somente se guardava da soberba dos olhos, como também de contaminar suas mãos com qualquer má ação.
E o fizera sob a pena de anátema que outro comesse o que ele viesse a semear, caso se desviasse do seu propósito de viver na prática da justiça.
Ele também se impôs o anátema de que sua esposa o traísse com outro, caso deixasse o seu coração ser seduzido por outra mulher, ou caso armasse qualquer tipo de traição ao seu próximo.
Ele sabia que tinha um Senhor no céu, e por isso procurava ser um patrão justo na terra em relação a seus servos.
Sabia que tanto ele quanto seus servos eram iguais perante Deus.
Ele também se impôs o anátema de que caísse o seu ombro e que o seu braço fosse desconjuntado, caso fosse omisso em atender ao pobre, ao órfão, à viúva e qualquer outro tipo de necessitado, que dependesse da sua ajuda.
Jó declarou expressamente que a sua confiança e esperança não se encontravam no ouro (v. 24), e que não era a sua grande riqueza a razão do seu regozijo (v.25), e nem era um adorador de ídolos, citando por exemplo a adoração que muitos faziam do sol e da lua, porque com isso teria negado a Deus que se encontra no céu.
Ele não se alegrava na ruína dos seus inimigos, e não exultava quando o mal lhes sobrevinha, e nunca pediu com sua boca a morte de nenhum deles.
Ele hospedava em sua casa os estrangeiros e peregrinos.
Ele bem conhecia o pecado de Adão, que procurou se esconder de Deus, para que não descobrisse as suas transgressões, e por isso nunca havia fugido do seu dever de ser justo mesmo quando era pressionado pela multidão.
Jó estava tão em paz com a sua consciência quanto ao modo da sua vida justa, que caso os seus inimigos escrevessem contra ele acusações mentirosas, ele as tomaria sobre si sem qualquer rancor, e as carregaria consigo à presença de Deus, porque aquilo somente serviria para aumentar a sua honra, porque certamente daria ocasião para que o Senhor fizesse a sua defesa.
De onde este homem aprendera tudo isto, senão da sabedoria divina?
Muitos séculos antes de Paulo ter declarado que não devemos nos importar com os juízos enganosos que fazem contra nós, porque é o Senhor quem nos julga, Jó tivera conhecimento deste princípio de sabedoria, por causa da sua comunhão com Deus, e o temor verdadeiro que tinha dEle, desviando-se do mal.
A vontade de Deus é imutável e o modo de servi-lo é caminhando em fé e justiça.
Muitos outros através dos séculos têm andado nas mesmas pegadas de Jó, e no assunto da comunhão com Deus foram até mesmo mais longe do que ele, porque isto não foi um privilégio concedido apenas ao patriarca, mas a todos os que se esforçam para agradar ao Senhor.
Nós temos o exemplo dos apóstolos, e depois deles de muitos servos fiéis do Senhor, sobretudo nas pessoas dos puritanos ingleses, que por um período aproximado de dois séculos seguidos (XVI e XVII) suplantaram a muitos nesta questão de viver em verdadeira santidade de vida.
O especialista em puritanismo, J. I. Parker, cuja leitura de seus livros acerca dos puritanos, recomendamos a todos na íntegra, escreveu sobre a consciência dos mesmos, e registramos partes deste testemunho a seguir.
Observe que o grande segredo destes gigantes na prática da justiça divina, encontrava-se na completa consagração de suas vidas a Deus, com base na justiça de Cristo, que mediante a fé, e pela operação da graça, não somente os justificou como também foi neles implantada pela determinação deles de viverem todas as doutrinas do evangelho, assim como elas se encontram registradas na Bíblia.
“O fato importante nas mentes e nos corações dos Puritanos era a preocupação acerca de Deus - em conhecê-Lo verdadeiramente, em servi-Lo
corretamente, em glorificá-Lo e em usufruir dEle. Por terem esses interesses, eles muito se preocupavam pelas questões da consciência, pois afirmavam que a consciência é o órgão mental do homem através do qual Deus os impressiona com a sua Palavra. Segundo pensavam, nada era mais importante, para qualquer pessoa, do que ter a sua consciência iluminada, instruída e purificada. Para eles, não podia haver real entendimento espiritual, nem qualquer piedade genuína, a não ser que os homens expusessem e escravizassem suas consciências à Palavra de Deus.
Com esta declaração, os Puritanos não estavam fazendo mais do que manter a ênfase que remontava aos primeiros dias da Reforma.
Poderíamos evocar, por exemplo, as momentosas palavras de Lutero, em Worms: "Minha consciência está cativa à Palavra de Deus. Não posso e não quero me retratar de coisa alguma, pois ir contra a consciência não é correto nem seguro. Aqui estou; nada mais posso fazer. Deus me ajude. Amém".
Também podemos pensar sobre a famosa sentença acerca da doutrina da justificação, no vigésimo capítulo da Confissão de Augusburgo,
de 1530: "Essa doutrina inteira deve ser ligada àquele conflito de uma consciência aterrorizada (illud certamen perterrefactae conscientiae), e sem esse conflito a doutrina não pode ser entendida". Afirmações dessa ordem deixam claro a posição cêntrica da consciência, no entendimento dos reformadores, sobre o que significa ser um crente. Para eles, a consciência significava o conhecimento que um homem tem de si mesmo, como quem está na presença de Deus (coram Deo, nas palavras de Lutero), sujeito à Palavra de Deus e ao juízo da lei do Senhor, e, no entanto – se ele é crente - justificado e aceito, apesar de tudo, por meio da graça divina. A consciência era o tribunal (forum) onde era proferida a sentença justificadora de Deus. A consciência era o único solo onde podiam crescer a verdadeira fé, esperança, paz e alegria. A consciência era uma faceta da imagem de Deus, ainda que desfigurada, na qual o homem fora criado; e o cristianismo vital (a "religião cristã" sobre a qual Calvino escreveu as Institutos) estaria diretamente arraigado nas apreensões e nos exercícios da consciência sob a influência sondadora da Palavra de Deus, que é viva e poderosa, bem como da iluminação de seu Santo Espírito. Assim asseguravam os reformadores; e os Puritanos também. Mas onde achamos esta ênfase hoje em dia? O fato assustador é que, no presente, essa nota dificilmente soa. Na sociedade ocidental como um todo, a consciência está decadente; a apostasia tomou conta dos homens, e daí, como acontece sempre que a fé falha, os padrões morais decaem...
Portanto, um estudo sobre a consciência dos Puritanos bem pode nos desafiar e ser saudável para nós, nos dias atuais.
Todos os teólogos Puritanos, desde Perkins, concordavam em conceber a consciência como uma faculdade racional, um poder de autoconhecimento e juízo moral, que trata com questões de certo e errado, de dever e privilégio, lidando com essas coisas autoritativamente, como a voz de Deus. Por muitas vezes os Puritanos apelavam para a forma da palavra (cons-ciência, do latim, con-scientia), como um termo que aponta para o fato que o conhecimento possuído pela consciência é um conhecimento compartilhado, conjunto; um conhecimento (scientia) mantido em comum com (con-) outrem, a saber, Deus. Assim, os juízos da consciência expressam o mais profundo e autêntico autoconhecimento que um homem tem — isto é, o conhecimento que a pessoa tem de si mesma de acordo com a maneira que Deus a conhece.
William Ames iniciou seu manual sobre a consciência e o casuísmo, reproduzindo a definição de Tomás de Aquino sobre a consciência: "É o julgamento que um homem faz de si mesmo, de acordo com o julgamento que Deus faz a respeito dele"; variantes dessa definição com frequência figuram nos escritos dos Puritanos. Ames apelou para Isaías 5.3 e 1 Coríntios 11.31 como as bases bíblicas para a ideia.
David Dickson, o professor de Edimburgo, fornece uma análise mais completa, de acordo com essas mesmas linhas:
A consciência, no que concerne a nós mesmos, é... o poder de compreensão das nossas almas, o qual examina como estão as coisas entre Deus e nós, comparando a vontade de Deus revelada com o nosso estado, condição e comportamento, mediante pensamentos, palavras ou atos, feitos ou omitidos, e então fazendo juízo sobre o resultado, conforme o caso requerer.
A consciência, diz Thomas Goodwin, é "uma parte da razão prática", e todos os teólogos Puritanos, seguindo Tomás de Aquino - pois nunca hesitaram em acompanhar os escritores medievais, quando pensavam que seus escritos eram bíblicos — retrataram os raciocínios da consciência como tendo a forma de um silogismo prático, ou seja, uma inferência baseada em duas premissas, a maior e a menor, acerca de nosso dever (o que deveríamos fazer ou não fazer) ou de nosso estado perante Deus (obediente ou desobediente, aprovado ou desaprovado, justificado ou condenado). Dickson fornece-nos o seguinte exemplo de um silogismo sobre o dever: O que Deus determinou como a única regra de fé e de comportamento, eu devo estar atento para seguir como minha regra. E Deus designou as Sagradas Escrituras para ser a única regra de fé e de comportamento. Portanto, devo estar atento para seguir as Escrituras como minha única regra.
Uma outra ilustração seria esta: Deus me proíbe roubar (premissa maior); pegar este dinheiro seria roubar (premissa menor); portanto, não devo pegar este dinheiro (conclusão).
Em um silogismo prático sobre o estado de alguém, a premissa maior é alguma verdade revelada, que funciona como regra de autojulgamento; e a premissa menor é algum fato que observamos acerca de nós mesmos. Ames deu uma ilustração de dois silogismos: no primeiro, a consciência condena; no segundo, ela nos consola. O primeiro é: "Aquele que vive no pecado morrerá. Eu vivo no pecado. Portanto, eu morrerei".
E o segundo: "Quem crer em Cristo não morrerá, mas viverá. Eu creio em Cristo. Portanto, não morrerei, mas viverei"...
A experiência universal diz que a consciência é quase totalmente autônoma em sua atuação; embora algumas vezes possamos suprimi-la ou abafá-la, normalmente ela fala de forma independente de nossa vontade, ou mesmo de modo contrário à nossa vontade. E quando ela fala, manifesta-se de modo estranhamente distinto de nós; eleva-se acima de nós, dirigindo-se a nós com uma autoridade absoluta, que não lhe tínhamos dado, e que não podemos tirar dela. Portanto, personificar a consciência e tratá-la como vigia e porta-voz de Deus na alma não é mera imaginação, é uma necessidade da experiência humana. Assim, quando os Puritanos chamavam a consciência de "representante e vice-regente de Deus em nós", "espiã de Deus em nosso peito", e "policial que Deus usa para prender o pecador", não podemos rejeitar essas ideias como esquisitices da imaginação; elas representam uma tentativa séria de fazer justiça ao conceito bíblico de consciência, o que se reflete na experiência de todos - a saber, o conceito de consciência como uma testemunha que declara fatos (Rm 2.15; 9.1; 2 Co 1.12), um mentor que proíbe o mal (At 24.16; Rm 13.5), e um juiz que aquilata o merecimento (Rm 2.15; Jo 3.20,21). Esses textos confirmam amplamente o conceito Puritano de consciência como aquela faculdade que Deus pôs no homem para ser uma caixa de ressonância de sua Palavra, em sua aplicação às nossas vidas, ou (mudando a metáfora) um espelho que capta a luz da verdade moral e espiritual, que brilha de Deus, e a reflete em um foco concentrado sobre os nossos atos, desejos, alvos e preferências. Os Puritanos meramente seguiam a Bíblia, quando retratavam a consciência nesses termos, como o monitor de Deus em nossas almas.
Ampliando esse pensamento final, agora citaremos três típicas e detalhadas exposições Puritanas sobre a consciência e suas atividades.
Primeiro, damos o quadro de Richard Sibbes acerca da consciência como o tribunal de Deus dentro de nós, onde o julgamento final está sendo antecipado (um pensamento Puritano bastante comum): Para esclarecer melhor ainda a natureza da consciência [Sibbes estava expondo 2 Co 1.12], vemos que Deus pôs um tribunal no homem, havendo nele tudo quanto há em um tribunal:
1. Há um registro onde é anotado o que temos feito... A consciência tem seu diário. Tudo fica anotado. Nada é esquecido, embora pensemos que é... há um registro onde fica tudo gravado. A consciência é esse registro.
2. Há também as testemunhas. "O testemunho da consciência." A consciência presta testemunho: isto eu fiz, isto eu não fiz.
3. Há um acusador ao lado da testemunha. A consciência acusa ou desculpa.
4. Há também um juiz. A consciência julga: isso foi feito direito, aquilo foi feito errado.
5. Há um executor, papel também desempenhado pela consciência.
Sob acusação e juízo, vem a punição. A primeira punição ocorre dentro do homem, sempre antes dele chegar ao inferno. A punição da consciência é um julgamento anterior ao julgamento futuro. No presente, há um lampejo do inferno, depois de algum ato mau... Se o entendimento apreende coisas dolorosas, então o coração bate, como Davi sentiu "bater-lhe o coração" (1 Sm 24.5)... O coração bate forte de tristeza pelo momento presente e de temor pelo futuro.
Deus pôs e implantou no homem esse tribunal da consciência, sendo esse, por assim dizer, onde Deus efetua seu primeiro julgamento... os seus vereditos. A consciência desempenha todos esses papéis. Ela registra, testifica, acusa, julga, executa; ela faz tudo.'...
A fim de salientar o significado da consciência dentro do esquema teológico dos Puritanos, agora nós a apresentaremos em relação com alguns outros dos principais tópicos preferidos pelos Puritanos, mostrando como algumas de suas ênfases mais características estavam ligadas à sua visão sobre a consciência, e refletidas em seu ensino sobre ela.
Em primeiro lugar, esse ensino reflete o ponto de vista Puritano sobre as Sagradas Escrituras. Os Puritanos diziam que Deus deve controlar nossas consciências de modo absoluto. "A consciência... deve ser sujeitada a Ele, a Ele somente; pois só Ele é Senhor da consciência... A consciência é representante de Deus, e, ao exercer seu ofício, deve limitar-se às ordens e instruções do Senhor soberano". Segue-se daí uma imperativa necessidade de mantermos nossas consciências bem sintonizadas com a mente e a vontade de Deus. Doutra maneira, não poderemos evitar de cair no erro, seja ele qual for; pois desconsiderar a consciência e seguir uma consciência errante são, ambas as coisas, pecados. Explicava Baxter:
"Se você segui-la, estará quebrando a lei de Deus ao fazer aquilo que Deus proíbe. Se você esquecê-la ou agir contra ela, estará rejeitando a autoridade de Deus, ao fazer aquilo que você pensa que Deus proíbe" .
Em suas vinte e sete normas acerca de "como servir fielmente a Cristo e fazer o bem", Baxter adverte contra a ideia que a consciência, como tal, é o padrão definitivo:
Não faças de teus próprios juízos, ou de tua consciência, a tua lei, como diretriz de teus deveres, pois a consciência meramente discerne a lei de Deus e o dever que Ele te impôs, bem como a tua obediência ou desobediência a Ele. Há um perigoso erro que é muito comum no mundo [mais comum ainda em nossos dias]: que um homem está obrigado a fazer tudo que a sua consciência lhe declara ser a vontade de Deus; e que todo homem deve obedecer à sua consciência, como se fosse ela a legisladora do mundo. A verdade, porém, é que Deus, e não nós, é o nosso legislador. E a consciência tem... como papel... tão-somente discernir a lei de Deus, exigindo que nós a observemos. Uma consciência errada não deve ser obedecida, e, sim, ser melhor informada... Todavia, como pode ser conhecida a vontade de Deus? Podemos falar sobre os requisitos dEle com certeza e exatidão? Haverá como evitar a neblina da suposição piedosa sobre esse assunto, entrando na clara luz da certeza? Sim, respondiam os Puritanos; a maneira é atrelar a consciência às Santas Escrituras, onde a mente de Deus é plenamente revelada a nós. Para eles, a Bíblia era mais do que o falível e, algumas vezes, até falaz testemunho humano sobre a revelação, que é o máximo que alguns estudiosos modernos admitem. As Escrituras são a própria revelação, a Palavra viva do Deus vivo, o testemunho divino sobre os próprios planos e atos redentores de Deus, escrito pelo Espírito Santo através de agentes humanos, para dar à igreja de todos os séculos orientações claras sobre todas as questões que poderiam surgir quanto à fé e à vida.
Poder-se-ia objetar, contudo, que essa fórmula é irreal e sem substância. Afinal, a Bíblia é uma obra antiquíssima, produto de uma cultura que há muito se desvaneceu. A maior parte de seu material foi escrita para um povo que vivia em uma situação muito diversa da nossa.
Como poderia projetar uma luz clara e direta sobre os problemas da vida atual? Os Puritanos replicavam que isso é possível porque Deus, o autor da Bíblia, permanece o mesmo, e seus pensamentos sobre a vida humana não mudam. Se pudermos aprender quais princípios Ele estava inculcando e aplicando em seu relacionamento com Israel e com a igreja primitiva e, então, reaplicá-los às nossas próprias situações, isso constituirá a orientação que carecemos. Foi a fim de ajudar-nos a fazer isso que o Espírito Santo nos foi outorgado. Por certo, ver os princípios relevantes e aplicá-los corretamente em cada caso é, na prática, uma tarefa árdua. Somos constantemente levados a errar por ignorarmos as Escrituras e julgarmos equivocadamente as situações; ser paciente e humilde ao ponto de receber a ajuda do Espírito também não é fácil. Permanece de pé, contudo, que, em princípio, a Bíblia nos provê uma clara e exata orientação para cada detalhe e área da vida; e, se nos aproximarmos das Escrituras dispostos e com expectativas de aprender, Deus mesmo selará sobre as nossas mentes e corações a clara certeza de como devemos nos comportar em cada situação que enfrentarmos. "Deus tem apontado meios para a cura da cegueira e do erro", escreveu Baxter. "Vem à luz, com a devida autossuspeita e imparcialidade, usa com diligência todos os meios de Deus, evita as causas do engano e do erro, e a luz da verdade imediatamente te mostrará a verdade."
Os Puritanos buscavam uma clara certeza quanto à verdade divina em seu aspecto prático, crendo que essa certeza lhes havia sido dada. Sua própria inquirição aguçava suas sensibilidades morais e seu discernimento quanto à Bíblia. Não estavam interessados em algum vago enlevo moral; o que queriam era apreender a aplicação da verdade divina, com a mesma precisão com que tinha sido revelada. Por causa de seu interesse pela precisão em seguirem a vontade revelada de Deus, em questões morais e eclesiásticas, os primeiros Puritanos foram apelidados de "rigoristas".
Embora fosse ofensivo, este foi um bom apelido para eles. Naquela época, tal como hoje, as pessoas explicavam as atitudes deles como irritabilidade ou morbidez de temperamento; mas não era por esse prisma que eles viam as coisas. Richard Rogers, o pastor Puritano de Wethersfield, Essex, na virada do século XVI, certo dia estava cavalgando com o senhor do feudo local. Este, depois de espicaçá-lo por algum tempo acerca de sua "precisão" em tudo, perguntou-lhe por que ele se mostrava tão preciso. Replicou Rogers: "Ó, senhor, eu sirvo a um Deus preciso". Se existisse um lema Puritano, esse seria apropriado. Um Deus preciso - um Deus que desvendou nas Escrituras, de modo exato, a sua mente e a sua vontade, e que espera de nós, seus servos, uma correspondente precisão nas crenças e na conduta - essa era a visão do Deus que criou e que controlava a atitude histórica dos Puritanos. A Bíblia levou-os a isso. E nós, que compartilhamos da estimativa Puritana sobre as Santas Escrituras, não poderemos nos desculpar, se deixarmos de mostrar diligência e conscientização iguais às deles, ordenando nossas vidas em consonância com a Palavra de Deus escrita.
Segundo, o ensino Puritano sobre a consciência refletia a posição deles acerca da religião pessoal. Para os Puritanos, a piedade era, essencialmente, uma questão de consciência, visto que consistia em uma reação favorável à verdade evangélica conhecida. Essa reação era sensível, disciplinada, refletida, centrada na obtenção e preservação de uma boa consciência. Enquanto um homem ainda não foi regenerado, a sua consciência oscila entre atitudes boas e más. A primeira obra da graça consiste em despertar a sua consciência, fazendo-a ver seu estado de completa maldade, forçando o homem a enfrentar as demandas impostas a ele por Deus, tornando-o assim cônscio de sua culpa, incapacidade, rebelião, contaminação e alienação aos olhos de Deus. Mas o conhecimento sobre o perdão e a paz através de Cristo, faz aquela consciência má tornar-se boa. Uma boa consciência é um dom de Deus para aqueles que, à semelhança do peregrino de Bunyan, Ele capacita a olhar com entendimento para a cruz. Essa boa consciência pode ser mantida durante toda a vida, por buscarmos cumprir a vontade de Deus em todas as coisas, e por olharmos permanentemente para a cruz...
Uma boa consciência, diziam os Puritanos, é a maior bênção que existe. Afirmou Sibbes: "A consciência é ou a maior amiga ou a pior inimiga neste mundo". Não há melhor amiga do que a consciência que experimenta paz com Deus. Disse ainda Fenner:
Primeiro... ela é a origem de todos os consolos. Um digno teólogo
chamou-a de o seio de Abraão para a alma...
Segundo, uma consciência tranquila faz um homem degustar a doçura das coisas celestes e espirituais. Faz a Palavra ser para ele, assim como foi para Davi, mais doce do que o mel. "Não me aparto dos teus juízos", dizia Davi (assim dizia a consciência dele). E o que vem em seguida? "Quão doces são as tuas palavras ao meu paladar! Mais que o mel à minha boca" (S1 119.103). Uma boa consciência faz um homem provar dulçor em suas orações... em um domingo... nas ordenanças... Qual é a razão pela qual tão poucos provam doçura nessas coisas? A razão é esta: Por não terem a paz de uma boa consciência...
Terceiro, uma boa e tranquila consciência faz um homem provar a doçura em todas as coisas exteriores - na comida, na bebida, no sono, na companhia de seus amigos... O homem sadio, mesmo solitário, tem prazer nas recreações, nos passeios, nos alimentos, nos esportes e em coisas semelhantes; mas, essas coisas não consolam os enfermos recolhidos ao leito ou aos moribundos. Mas quando a consciência está em paz, a alma goza de boa saúde; assim todas as coisas são desfrutadas com doçura e consolo.
Quarto, ao homem ela adoça os males, as tribulações, as cruzes, as tristezas e as aflições. Se um homem tem a verdadeira paz em sua consciência, ele recebe consolo em meio a todas essas coisas. Quando as coisas externas nos inquietam, quão consolador é termos em casa alguma coisa que nos anime! Assim, quando as tribulações e aflições externas nos perturbam, adicionando tristeza à tristeza, então, que felicidade seria ter a paz interior, a paz na consciência para suavizar e aquietar tudo isso! Quando chegam a doença e a morte, qual o valor de uma boa consciência? Sem dúvida, mais do que todo o mundo ao redor...
A consciência é o reflexo da paz de Deus na alma: na vida, na morte, no julgamento, a consciência é um consolo indizível.
Um homem dotado de boa consciência pode enfrentar a morte com serenidade...
Uma boa consciência é terna. A consciência de um homem ímpio pode ficar tão calejada que raramente reage; mas a consciência saudável de um crente (diziam os Puritanos) age continuamente, ouvindo a voz de Deus em sua Palavra, procurando discernir a sua vontade em tudo, sendo ativa na autovigilância e no autojulgamento. O crente saudável reconhece sua fragilidade, sempre suspeita e desconfia de si mesmo, a fim de que o pecado e Satanás não o apanhem desprevenido. Assim, ele se examina regularmente diante de Deus, sondando os seus atos e motivos e condenando-se impiedosamente quando encontra em si mesmo alguma deficiência ou desonestidade moral. Esse era o tipo de autojulgamento que Paulo recomendou que os coríntios fizessem ao participarem da Ceia do Senhor (1 Cor 11.31). O grau de acurada perspicácia que nossa consciência exibe, em detectar nossos pecados reais (em distinção aos pecados imaginários, sobre os quais Satanás quer que nos concentremos), serve de índice sobre quão bem realmente conhecemos a Deus e sobre quão perto dEle andamos — em outras palavras, um índice da verdadeira qualidade de nossa vida espiritual. A consciência preguiçosa de um crente "sonolento" e "entorpecido" é sinal de enfermidade espiritual. Um crente saudável não tem de ser necessariamente uma pessoa entusiasmada e extrovertida, mas é alguém que tem o senso da presença de Deus gravado profundamente em sua alma; tal crente treme diante da Palavra de Deus, permitindo que ela habite nele ricamente, por meio de constante meditação sobre seus princípios, e que diariamente submete a sua vida a avaliações e mudanças, em resposta à Palavra de Deus. Podemos começar a aquilatar nosso verdadeiro estado diante de Deus, indagando de nós mesmos quanto exercício de consciência, de acordo com essas linhas, ocorre em nossa vida diária.
Terceiro, o ensino dos Puritanos sobre a consciência refletia-se em sua pregação. O sinal mais característico do ideal Puritano quanto à pregação era a ênfase que davam à necessidade de aplicações perscrutadoras da verdade às consciências de seus ouvintes. Um sinal de um pregador "espiritual" e "poderoso", na opinião dos Puritanos, era a intimidade e fidelidade de aplicação, com a qual ele "rasgava" as consciências dos homens e os fazia verem-se a si mesmos conforme Deus os via. Os Puritanos sabiam que os homens pecaminosos são lentos em aplicar a verdade a si mesmos, e rápidos em aplicá-la a outros. Assim, declarações gerais não-aplicadas, acerca da verdade evangélica, dificilmente produzem um bom efeito. Por isso (diziam os Puritanos), um pregador deve perceber que uma parte essencial de sua tarefa é fazer aplicações detalhadas, guiando as mentes dos ouvintes, passo a passo, por aquelas veredas de silogismos práticos que arraigam a Palavra em seus corações, para que a Palavra faça seu trabalho julgador, golpeador, curador, consolador e orientador. Declarou Ames: "Por causa da lentidão dos homens na... aplicação, pesa sobre todos os ministros a necessidade não só de declararem a vontade de Deus de modo geral, mas também, até onde forem capazes, de ajudarem a pessoa a fazer a aplicação dessa vontade, pública e privadamente". A aplicação é a estrada utilizada pelo pregador para levar a Palavra desde a cabeça até ao coração dos seus ouvintes. Segundo o Westminster Directory for the Publick Worship of God (Manual de Westminster para a Adoração Pública a Deus), esse aspecto aplicativo da pregação é um trabalho difícil, que requer grande prudência, zelo e meditação; e, para o homem natural e corrupto, isto será recebido como algo desagradável; mas o pastor deve esforçar-se para realizar tal obra de modo que seus ouvintes percebam que a Palavra de Deus é viva e poderosa, capaz de discernir os pensamentos e intuitos do coração; e que, se estiver presente alguma pessoa incrédula ou ignorante, ela terá desvendados os segredos de seu coração, dando então glória a Deus.
A Palavra precisa golpear a consciência, se tiver de fazer algum bem aos homens.
Uma aplicação eficaz pressupõe que a verdade aplicada é uma palavra genuína, vinda de Deus, e não somente alguma ideia brilhante do pregador.
Isso também significa que ela foi extraída do texto escolhido pelo pregador, de tal modo que "os ouvintes possam discernir como Deus a ensina a partir daquele texto" (Westminster Directory), sendo assim forçados a perceber que ela lhes é apresentada com a autoridade de Deus...
De onde se origina a habilidade para aplicar, de forma apropriada, a verdade de Deus na pregação? Da experiência de ter Deus aplicado poderosamente a sua verdade ao coração do pregador. Geralmente, no dizer dos Puritanos, aquele cuja consciência foi mais profundamente atingida pela verdade de Deus tem maior poder para despertar as consciências alheias, mediante aplicações prudentes e traspassadoras. Isso faz parte do que John Owen entendia, ao dizer que "se a Palavra não reside poderosamente em nós, então também não será transmitida poderosamente por nós." E os Puritanos sem dúvida diriam que isso faz parte do verdadeiro significado da declaração de Anselmo - é o coração (pectus) que faz o teólogo.
Poderíamos indagar: Essa ênfase sobre a sondagem da consciência não produz um tipo de piedade introspectiva e mórbida? Essa ênfase sobre um constante autoexame não chega a debilitar a fé, por desviar a nossa atenção para longe de Cristo, de sua plenitude para o nosso vazio, levando-nos assim ao desânimo e à depressão espirituais? Sem dúvida, esse seria o resultado, se isso fosse um fim em si mesmo; mas, de fato, não o é. De seus púlpitos, os Puritanos "rasgavam" as consciências, incentivando o autoexame, a fim de conduzirem os pecadores a Cristo e de ensinar-lhes como se vive pela fé nEle. Eles usavam a lei somente para abrir caminho para o evangelho e para uma vida de dependência à graça de Deus. A morbidez e a introspecção, a autoabsorção tristonha de uma pessoa que nunca desvia os olhos de si mesma, é um Puritanismo errado; os próprios Puritanos condenaram essa atitude por repetidas vezes. O estudo dos sermões dos Puritanos mostra que a preocupação constante daqueles pregadores, em todas as suas investigações sobre o pecado, era levar seus ouvintes à vida de fé e de uma boa consciência. Conforme diziam, essa é a vida mais jubilosa que uma pessoa pode conhecer neste mundo.
A atenção que os Puritanos davam à boa consciência emprestava grande força ética ao seu ensino. Dentre todos os grupos evangélicos, desde a Reforma até o presente, sem dúvida os Puritanos foram os maiores pregadores da retidão pessoal. De fato, eles foram o sal da sociedade de seus dias e, de vários modos, criaram uma consciência nacional que só recentemente começou a ser corroída. A demanda pela santificação do domingo; falar abertamente contra os divertimentos desmoralizadores (os folguedos indecentes, a dança promíscua, a glutonaria e o alcoolismo, as obras pornográficas); rejeição às profanações; insistência sobre o fiel cumprimento da profissão e da vocação na vida - essas foram ênfases que até hoje são lembradas (algumas vezes, aplaudidas; outras vezes, ridicularizadas) como atitudes "Puritanas". Assim como Laud tinha uma política de "abrangência" nas questões eclesiásticas, assim também os Puritanos tinham a sua política de "abrangência" no terreno ético; e tudo faziam para ministrar orientação detalhada sobre os deveres envolvidos nas diversas relações do crente com Deus e com os homens. Entre os memoriais de sua obra, nesse campo, existem muitas exposições impressas sobre os Dez Mandamentos; grandes obras como a de Richard Rogers, Seven Treatises... the Practice of Christianity (Sete Tratados... A Prática do Cristianismo), (1603), os volumes de Perkins e de Ames sobre a consciência e o casuísmo, e o Christian Directory (Diretrizes Cristãs), de Baxter (1670); além de inúmeros pequenos manuais sobre a vida cristã, desde a obra de Arthur Dent, Plain Man's Pathway to Heaven (Caminho ao Céu para o Homem Comum), (1601), até ao livro de Thomas Gouge, Christian Directions Shewing how to Walk with God All the Day Long (Orientações Cristãs que Mostram como Andar com Deus o Dia Inteiro), (1688).
Teria sido todo esse detalhado ensino sobre a conduta cristã um lapso para um novo legalismo, uma privação da liberdade cristã? Indicaria ele um declínio na direção de caminhos farisaicos? Não, pois, primeiro, todo esse ensino ético estava alicerçado sobre o evangelho, conforme sucede a todo o ensino do Novo Testamento. Os motivos éticos supremos do puritanismo eram a gratidão em face da graça recebida e o senso de responsabilidade por andar de uma maneira digna da chamada do crente, não havendo no ensino Puritano o menor espaço para a noção de justiça própria. Esse ensino frisava constantemente que as obras do crente originam-se da vida eterna, ao invés de visarem à vida eterna; também era ensinado que nossas melhores obras estão contaminadas pelo pecado, sempre contendo algo que precisa do perdão divino.
Segundo, esse ensino ético era dado (de novo, tal como no Novo Testamento) não como um código de conceitos rotineiros, para ser executado com precisão mecânica. Era dado sob a forma de atitudes a serem mantidas e princípios a serem aplicados. Assim, por mais ensino e conselho que um homem viesse a receber, a ele sempre caberia tomar as decisões e determinações finais (sobre como seguir os conselhos de seu pastor, como aplicar um dado princípio a este ou àquele caso, etc.), por sua própria iniciativa, de forma espontânea, sendo responsável, aos olhos de Deus, pelos atos ditados por sua própria consciência.
Terceiro, o ensino ético dos Puritanos não era autoritário; era oferecido como exposição e aplicação das Escrituras, devendo ser sempre comparado com a Bíblia, por aquele que o recebia, de acordo com o princípio do dever do julgamento particular, advogado pela Reforma. Os Puritanos não queriam que as consciências dos homens estivessem atreladas aos seus ensinamentos, mas somente à Palavra de Deus, e aos ensinos Puritanos, só até onde pudesse ser demonstrado que concordavam com a Palavra de Deus.
Quarto, o ensino ético Puritano assumia a forma de um ideal positivo de piedade zelosa e sábia, o que sempre deveria ser a meta do crente, embora nunca se atinja plenamente esse alvo, enquanto se vive neste mundo. Também diziam que um ideal positivo não-alcançado é a morte do espírito legalista, o qual pode florescer em uma atmosfera de restrições negativas, onde a abstinência é reputada a essência da virtude. De fato, é impossível imaginarmos um ensino ético menos legalista, em seu espírito e conteúdo, do que o ensino ético dos Puritanos.”
Até aqui as palavras de J. I. Parker.
Por tudo o que vimos anteriormente só podemos concluir que a justificação pela fé é indispensavelmente necessária para que alguém possa viver de modo justo, porque a justiça prática que se exige de nós, não é aquela que podemos imaginar segundo os nossos próprios conceitos, ou conforme eles forem formulados por influência de outras pessoas, sendo considerados apenas no plano humano. A justiça que se exige de nós é aquela que é definida pelo próprio Deus em Sua Pessoa e Palavra, de modo que necessitamos apreender e praticar tudo o que nos seja ordenado, conforme podemos ver por exemplo na seção prática da epístola do apóstolo Paulo ao Colossenses, que transcrevemos a seguir:

Colossenses   3

1 Portanto, se fostes ressuscitados juntamente com Cristo, buscai as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus.
2 Pensai nas coisas lá do alto, não nas que são aqui da terra;
3 porque morrestes, e a vossa vida está oculta juntamente com Cristo, em Deus.
4 Quando Cristo, que é a nossa vida, se manifestar, então, vós também sereis manifestados com ele, em glória.
5 Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena: prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno e a avareza, que é idolatria;
6 por estas coisas é que vem a ira de Deus [sobre os filhos da desobediência].
7 Ora, nessas mesmas coisas andastes vós também, noutro tempo, quando vivíeis nelas.
8 Agora, porém, despojai-vos, igualmente, de tudo isto: ira, indignação, maldade, maledicência, linguagem obscena do vosso falar.
9 Não mintais uns aos outros, uma vez que vos despistes do velho homem com os seus feitos
10 e vos revestistes do novo homem que se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou;
11 no qual não pode haver grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos.
12 Revesti-vos, pois, como eleitos de Deus, santos e amados, de ternos afetos de misericórdia, de bondade, de humildade, de mansidão, de longanimidade.
13 Suportai-vos uns aos outros, perdoai-vos mutuamente, caso alguém tenha motivo de queixa contra outrem. Assim como o Senhor vos perdoou, assim também perdoai vós;
14 acima de tudo isto, porém, esteja o amor, que é o vínculo da perfeição.
15 Seja a paz de Cristo o árbitro em vosso coração, à qual, também, fostes chamados em um só corpo; e sede agradecidos.
16 Habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração.
17 E tudo o que fizerdes, seja em palavra, seja em ação, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai.
18 Esposas, sede submissas ao próprio marido, como convém no Senhor.
19 Maridos, amai vossa esposa e não a trateis com amargura.
20 Filhos, em tudo obedecei a vossos pais; pois fazê-lo é grato diante do Senhor.
21 Pais, não irriteis os vossos filhos, para que não fiquem desanimados.
22 Servos, obedecei em tudo ao vosso Senhor segundo a carne, não servindo apenas sob vigilância, visando tão-somente agradar homens, mas em singeleza de coração, temendo ao Senhor.
23 Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como para o Senhor e não para homens,
24 cientes de que recebereis do Senhor a recompensa da herança. A Cristo, o Senhor, é que estais servindo;
25 pois aquele que faz injustiça receberá em troco a injustiça feita; e nisto não há acepção de pessoas.


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